quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Recreio

Olhou para a mão que se estendia para ele e abanou a cabeça. Não, hoje não ia brincar na nova atracção do parque da escola. Da última vez que se aventurara, tinha corrido mal.

Ela sorriu, encolheu os ombros e correu para junto do grupo que fazia fila para experimentar o conjunto de ferros, cordas e cores, nas quais todos os miúdos do recreio se baloiçavam e faziam poses, quais macacos ou ginastas treinados.

Olhou para a cicatriz na perna. Tinha levado pontos. A enfermeira dizia que ele tinha tido sorte, mas ele não sentia isso. Aquele ferro tinha caído na altura errada e ele magoara-se mesmo a sério.
Lembrou as lágrimas quentes que lhe escorreram pela cara, a dor lancinante e o pânico na cara da professora, enquanto tentava manter a voz calma e indicava que seria necessário levá-lo ao hospital.
O sangue tinha cavalgado pela perna, e manchado as meias azuis que vestira nesse dia. Tinha-se sentido fraco e impotente, como se a situação acontecesse longe de si. As mãos tremiam e sentia-se fraco.

Quando acordou novamente, naquele dia, estava num sítio com uma luz muito branca, e um senhor de bata branca dizia-lhe que tinha de ter mais cuidado nas suas brincadeiras, com um sorriso. Aquele senhor não sabia que a culpa não era dele. O ferro tinha caído, fugido debaixo do seu pé. Tinha feito aquelas tropelias mais de mil vezes, no recreio, e sempre se sentira seguro e confortável.

Por isso, não. Não ia voltar a arriscar magoar-se tanto outra vez! Os outros miúdos que fossem experimentar, trepar e dar a cambalhota no novo brinquedo, ele não se importava, pensou enquanto, com um pequeno galho fazia desenhos na areia do parque, sentado com a cabeça apoiada nos joelhos.

Sentiu-a chegar perto dele e sentar-se. Pegou noutro ramo, e adicionou pequenas cornucópias ao desenho dele.
Quando levantou a cabeça e a olhou, viu as suas faces rosadas, o cabelo desgrenhado, da brincadeira, os olhos brilhantes de felicidade e o sorriso resplandecente que ela lhe dirigia. Deixou escapar um meio sorriso.

Nos dias seguintes, ela juntava-se a ele em rabiscos arenosos e cautelosas viagens de escorrega ou baloiço. Esperava por ele à porta da sala de aula, mal a campainha tocava, anunciando a liberdade.
Ele sorria-lhe e corriam os dois para que não lhes roubassem o lugar.

Era sexta-feira e depois de baloiçarem a alturas estonteantes, ela estendeu-lhe a mão. Hesitante, ele pousou a sua mão na dela e ela puxou-o para a fila, agora mais pequena, do novo brinquedo do recreio. Os seus olhos abriram muito e a cor fugiu-lhe das faces. Não queria voltar a trepar e cair, não queria magoar-se outra vez.
Ela manteve a mão bem firme na dele, e sentia-o apertar os seus dedos com força, mas não se queixou.

Image result for children playground climb"Quando a espera chegou ao fim, ela puxou-o gentilmente, apesar do olhar fixo com que ele contemplava os ferros e cordas. Devagar, ele subiu atrás dela e a cada passo sentiu-se mais forte.
Não sabia explicar a sensação. Não era adulto, e os adultos tinham muito mais jeito para explicar as coisas. Mas sentiu-se mais leve, mais corajoso.

No final do dia, voltara a estar pendurado de cabeça para baixo e a fazer as cambalhotas de que tanto gostava. Olhava para ela e via o seu sorriso, o triunfo, o olhar de superação.
E riam os dois, enquanto se desafiavam às posições mais estranhas e acrobacias mais perigosas.

A cicatriz manteve-se, lembrando-o de ter cuidado, de não se apoiar em ferros defeituosos ou instáveis. Mas a cada dia se notava menos, até ele eventualmente se esquecer de que a trazia, na maioria do tempo.

Mais tarde, viria a entender que cada cicatriz conta uma história. E que a pessoa em que nos tornamos, depende dessas histórias.
Mas isso são coisas de adultos.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Contos de Encantar

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Era uma vez um cavalo e o príncipe que nele montava,
Batalhando em guerras alheias, fazendo do campo casa.
Léguas e léguas percorridas, o cansaço que pesava,
Quase chegava à torre, mas com a fome, bateu a asa.

Era uma vez um tapete, mágico e voador,
Que lembrava os contos do oriente.
Que queria ser visto, ser célebre, actor!
E que fez a mala, pensando a quente.

Era uma vez uma fada, sozinha, cansada,
Com asas inúteis que já não obedeciam.
Sentindo-se triste, velha, acabada,
Passou a roubar dentes, às crianças que dormiam.

Era uma vez um peixe e a memória que falhava,
Numa vida feliz de quem não tem problemas.
Quanto mais nadava, mais de casa se afastava,
E aventurou-se noutros ecossistemas.

Era uma vez um castelo encantado,
Onde vivia uma Bela, que lia sem parar.
Excepto quando o Monstro chegava cansado,
E ela largava tudo, para o ir beijar.

Era uma vez um ratinho atrevido,
Que gostava de queijo e comia sem parar.
Até que um dia, um gato sussurrou-lhe ao ouvido,
Que, se não parasse, iria engordar.

Era uma vez um boneco de madeira,
Que sonhava em ser um rapaz de verdade.
Logo percebeu a sua grande asneira,
Quando, com o passar dos anos, chegou a velha idade.

E era uma vez um vermelho capuchinho,
De uma menina de histórias de encantar,
Que repousava, pousado, num cantinho,
Na toca de um lobo que a fazia sonhar.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Limbo

O pé dela mexia, inquieto, dentro do sapato e os dedos cravavam-se no sofá. A mente cavalgava por entre cenários mirabolantes e maravilhosamente assustadores, galopando entre as prateleiras de possibilidades que o momento trazia.

A mão dele pousou sobre a sua, a medo, delicadamente. Sentiu-se enrubescer e olhou-o. Os olhos dele fitavam-na, como se não conseguisse prestar atenção ao filme que passava no ecrã. Olhos meigos, com mil gradações de cor que a fascinavam e hipnotizavam.
Aqueles três segundos, pareceram horas. Sentia a pele aquecer e o rubor no rosto à medida que os lábios dele se aproximavam dos seus.

Quando os lábios se tocaram, sentiu-o doce, quente. E o que começou a medo, transformou-se numa miríade de sensações, em que as bocas exigiam e as línguas batalhavam, enquanto mãos exploravam com uma ânsia que não sabiam possuir.
A boca dela percorria os caminhos do pescoço dele, e sentia o pulsar do sangue sob a pele morena, enquanto os dedos se debatiam com os botões da camisa e o expunham, pele quente, peito ofegante. O corpo dele respondia a cada toque urgente, cada roçar de dentes junto às orelhas, enquanto ela semeava beijos descendentes até ao seu ventre.
Sentia as mãos dele puxar-lhe a camisola, ansiosas e incrivelmente ternas. Cada toque explodia na sua pele, cada beijo, cuidadosamente plantado, lhe entorpecia os sentidos. Beijava-o sofregamente e queria mais, sempre mais, à medida que o sentia descer, morder e provar cada recanto de si.

Os corpos entrelaçavam-se num jogo de tacto, som e ritmo, e ela deliciava-se com a pele salgada dele enquanto descobriam cada traço, cada forma, cada sabor. E à medida que avançavam, sentia a garganta emitir sons que não permitira, guturais, crus, que revelavam tudo o que estava a sentir e intensificavam quando ele se demorava em pontos estratégicos do corpo dela. Cada toque dele sobre o seu ventre a fazia gemer, e a forma como ele movia os dedos em si, fazia com que as suas pernas tremessem e não lhe obedecessem.
Nada mais existia naquele momento, do que aquele abraço, os olhos dele cravados nela, e as mãos dele que lhe iluminavam cada terminal nervoso em explosões de electricidade, brincando numa dança de toca e foge constante.

Sentiu a mão dele agarrar as dela, e antes que se apercebesse, sentiu os dois pulsos firmemente presos acima da cabeça, enquanto com a mão livre, ele a explorava sem piedade, demoradamente, provocando-lhe sensações, de um prazer doloroso, a que não conseguia escapar, completamente vulnerável, entregue a ele. A boca dele descia e cobria-a com um calor delicioso, enquanto ela se contorcia de prazer sob a sua língua.

Ouvia um som, distante, repetitivo. Ignorou-o.
Sentia o calor dele, o seu próprio corpo irrequieto ansioso por mais. Sentia o seu cérebro e todos os seus poros implorar por mais.

O som regressou. 

Mais...

Cada vez mais forte.

Mais...

Cada vez mais intrometido. 

Mais.

Até ser um "pi" constante que marcava as 7h30.

...

Acordou.
Tinha de ir trabalhar.

domingo, 15 de setembro de 2019

Entre Fogo e Pedras

E ali estava. Aquela pequena chama. Fraca, inconstante e que poderia a qualquer momento ser apagada por uma brisa. No entanto, a alegria reinava.
Há meses que não conseguia fazer fogo. Quando fazia faísca queimava-se e retraía-se e, por vezes, não tinha sequer força para raspar dois seixos um no outro as vezes suficientes para que o fogo surgisse.
Mas estava ali. O pequeno ramo, crepitante, que os olhos dela refectiam, húmidos.
Era um sinal de que as coisas estavam, lentamente a voltar ao normal. E se conseguira criar esta chama, talvez conseguisse criar outras.
Ou alimentá-la com ramos e folhas secas, para não deixar o lume extinguir-se.
Sentiu o calor, e o sorriso formou-se mais uma vez.
Teria de decidir a melhor forma de continuar o seu caminho. A pequena gruta onde se abrigara protegera-a da intempérie, e naquela terra nunca fazia muito frio. A temperatura era amena, naquela noite de  Janeiro.
A chama, frágil, parecia devolver-lhe o olhar, hipnotizando-a. Tinha esquecido o quão poderosa podia ser uma pequena luz.
Recolheu alguns paus e folhas outonais que encontrou espalhados pela gruta.
Fazendo um círculo de pequenas pedras, ateou a fogueira. Continuava a ser uma fogueira pequenina, apropriada a uma casa de bonecas. Mas era o seu fogo, o seu lume, que a tanto custo conseguira recuperar.
Aqueceu um pouco as mãos e esperou que se extinguisse, mas a luz manteve-se. Revelando recantos desconhecidos da gruta e humidade nas pedras tumulares.
Talvez amanhã saísse, à procura de galhos, ou mesmo de um ramo mais robusto, com que aumentar o seu pequeno milagre.
Ou talvez decidisse apenas ir em busca de melhor morada.
Para já, o fogo chamava-a. Pedia-lhe que não fosse.
E ela ficou.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Sinfonia

A música está presa na cabeça. Toca constantemente, sem cessar. 
Os acordes soam jocosos, saltitantes. A voz é desafiante, profunda, grave. Uma voz como nenhuma outra.
É como se todos os neurónios conspirassem numa dança complicada. Vagueiam pela mente ao som da batida, sempre igual, sempre ritmada ao compasso do coração.
E tenta-se de tudo. Tudo para tirar esta música tão bela, tão triste, das profundezas da  mente. Ouvem-se álbuns inteiros de outros artistas, pop, jazz, indie, clássica, rock, tudo o que possa distrair as pérfidas ligações nervosas. Sai-se com amigos, próximos ou não, distrai-se a mente com verdadeiras inutilidades, com trabalho, com desporto. Talvez correr seja uma opção, suar essa repetição infinita por todos os poros.
Sentimos a calma, a certeza de que, desta vez, conseguimos. É desta que a mente está vazia, branca.
E os acordes começam novamente. Começam devagar, como que a dizer um olá a medo, pedindo autorização para entrar, e ignorando-a logo de seguida, num crescendo intenso, desesperado, alucinado! Como se aquela fosse a única música que nos permitirá ouvir, para o resto da vida.
Ah, mas a voz! A voz parece tão distante. Não discernimos bem os sons, que chegam como uma amálgama de meias-palavras segredadas ao coração. É impossível entender o que diz essa voz aveludada, doce...
Dizem que para que uma música saia da cabeça, é preciso que a mente chegue aos acordes finais, que termine, que nos dê essa sensação de resolução, de entendimento. 
Mas quanto mais a música toca, mais parece não ter fim, ou sequer início.
As notas repetem-se, confundem-se, entrelaçam-se numa orgia de sons que explode todos os dias, a toda a hora, no lóbulo temporal, e desconcentra.
Oh, mas é a música mais bonita! É distante, porém doce. É acelerada, mas de compasso lento. É diferente de tudo o que já foi ouvido, é uma dança de cores amarelas e azuis que que se agarram e soltam, num vaivém de emoção.
Agarra-se a cada ponto do ser, arrepia. 
Lembra beijos, como flores, plantados na parte de trás do pescoço, e mãos que acariciam e se juntam, estimulando cada célula da pele, enquanto o calor aflora e cora. Lembra dedos que entrelaçam cabelos e que agarram, para não deixar escapar, ternurentos, sôfregos...
E a imaginação parte à aventura, embalada pela repetida canção. 
E a parte de mim que quer deixar de a ouvir, batalha, constantemente, com esse pedacinho do ser, que quer deixar-se inundar pela melodia, para sempre.


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E ao abrir os olhos, chega o momento em que é necessário recordar: 
É só música, é só música.

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Risco

Lembrava-se de ter recolhido munições. Havia uma armadura, grande, forte e trabalhada. Sabia que tinha escondido uma adaga algures e que não tinha esquecido o arco. Sabia defender-se, não era a sua primeira batalha. A aljava pesava-lhe no ombro, cheia de flechas por usar. Algumas tinha arrancado do seu próprio corpo, em batalhas anteriores, e levava-as consigo, para recordar o que vencera.

O caminho começara numa floresta densa, misteriosamente bela. O vento era forte, as árvores eram atiradas violentamente, numa dança assustadora. Não se lembrava da última vez que sentira tanto medo. As mãos tremiam, o sangue parecia ter paralisado nas veias e, no entanto, o seu coração nunca batera com tanta força contra o peito. Todos os seus sentidos se alarmavam, antecipando algo grande, prestes a acontecer. O arrepio que lhe percorria as costas, a fraqueza que sentia nas pernas, o constante pulsar dos tímpanos, ao ritmo do coração...
Inspirou fundo, e avançou.
A floresta era escura. Os pequenos raios de luz que escapavam ao dia cinzento, espreitavam entre as árvores como pequenos pirilampos. Esperou que os seus olhos se adaptassem à escuridão e deu um passo em frente, e depois outro. Deu por si a embrenhar-se no âmago da escura floresta, sem mantimentos, sem direcção, sem agasalhos para as noites frias. Apenas sabia, sentia. Sentia o futuro a aproximar-se a cada passo que dava e a pele eriçava-se com a sensação de que já tinha estado ali antes. Num sonho, talvez...

Os dias eram para caminhar, as noites eram passadas a medo. Sabia o perigo que corria, e precavia-se contra o mundo físico, mas não sabia como afastar os sonhos. Vívidos, ambiciosos... Perigosos.
Sem saber bem como, perdeu a aljava. Se não achasse que imaginava, diria que lha tinham roubado, durante a noite. E sem flechas, de que servia, realmente, o arco? Pousou-o junto a uma árvore robusta. 
Começou a perceber a floresta, a conhecer as suas curvas, os caminhos escondidos. Oh, sabia que nunca seria capaz de desvendar todos os mistérios de algo tão profundo. Mas cada passo a fazia embrenhar-se mais naquele conhecimento desconhecido, num transe do qual não sabia como voltar. Sabia que queria mais. Saber mais, descobrir mais, chegar ao coração da floresta, encontrar o tesouro com que sonhava todas as noites.

Conseguia ouvir a água a poucos metros. Água que contava histórias, que se interpunha entre ela e o seu destino. Aproximou-se de um rio violento, com correntes e profundidade, negro como o breu do céu que a cobria. Subiu, junto à margem. Teria de existir um ponto de passagem, um ponto em que fosse mais fácil chegar ao outro lado. À medida que andava, ouvia o rio contar a história da floresta. Como se cada gota de água fosse uma lágrima de mágoa e desamor.
Despiu a armadura, era pesada e, com certeza, afogar-se-ia para a manter. Deixou as botas para trás. Sentiu a roupa fina junto ao corpo, os pés descalços em contacto com a terra, o cabelo que rodopiava e lhe toldava a visão, e mergulhou.
Sentiu a água gélida agarrar-lhe os tornozelos, enquanto batalhava por se manter à tona. A corrente era forte e arremessava-lhe o corpo em direcção à foz, como se quisesse expulsá-la da floresta, como se insistisse em fazer dela marioneta e ditar-lhe o destino.
Enquanto lutava contra o rio, agarrando rochas, esperneando contra o frio que a assolava, ouvia o vento sussurrar-lhe que desistisse. Que talvez não fosse este o seu destino. Que podia procurar um destino mais fácil de alcançar.
Mas ela era teimosa. Tudo o que valera a pena, na sua vida, custara. Por vezes, um corpo cravejado de feridas e sonhos tenebrosos. Outras vezes, apenas uns arranhões e a marca da traição. 
Não ia deixar que este rio, contador de histórias, a afastasse. Enquanto acreditasse no seu objectivo, remaria contra a corrente.

Chegou à outra margem esbaforida, e deitou-se na relva. A respiração era ofegante e o corpo tremia com o frio e o cansaço. Enroscou-se em si mesma, tentando revestir-se do calor que parecia irradiar do seu peito. Sentia a roupa molhada contra a pele, os músculos açoitados e marcados.
E se aquela primeira provação fosse a menor de todas? Teria fôlego, ou mesmo vontade de ultrapassar as seguintes. Valeria a pena? Teria o rio razão? 

O dia amanheceu com nuvens dispersas e tímidos raios de sol que conseguiam ter, agora, um pouco mais de força ao empurrar as folhas das densas árvores.
Algo a chamava e continuou a caminhar. Descalça, desprotegida, só. 
Sentia cada pedra debaixo dos pés, como uma faca que dilacera a vontade de continuar. Havia de ganhar calo.
A floresta manteve-se silenciosa. O vento cessara, e o rio ficara para trás, e parecia-lhe que o caminho entre as árvores adensara, tornando-se mais estreito. Havia pequenas clareiras pelo caminho e, por vários dias, parecera que a floresta lhe fechara as portas. Para além dos espaços em que deixavam o sol entrar, as árvores mantinham-se imponentes, caladas. 
Os sonhos eram cada vez menos reais, como se a cabeça quisesse pregar-lhe partidas. Mas o coração continuava a bater com a força de um tambor.
A experiência dizia-lhe para o seguir. O cérebro mente, o coração não. Enquanto o seu peito continuasse a ecoar nos seus ouvidos, não desistiria.

O medo era cada vez maior. Tinha investido meses nesta demanda, tinha-se entregado de corpo e alma. 
Sim, avisaram-na de que o risco seria avassalador, de que não podia esperar um caminho fácil e que, com tantos tesouros a ser descobertos, ela havia escolhido o mais difícil de perseguir. 
Muitos tentaram demovê-la de tão louca ideia.
Outros incentivaram-na a ir, mas sem se empenhar verdadeiramente, pois colocar o coração neste tipo de demanda era um risco demasiado grande. Sem empenho, poderia desistir a tempo, sem sair ferida, quando a situação se tornasse difícil.
Mas ela optara pelo risco. Recusava-se a viver a vida fácil e organizada, a vida ponderada e medida a cada momento, a vida onde o vento não sopra e o sol brilha a meia haste todos os dias.
Ela queria mais. Queria tudo. Queria o risco de viver. O risco dos dias de chuva e trovoada, e o risco dos dias em que o sol brilha com todas as forças.
Ela não queria ficar adormecida em si mesma, presa a um passado de batalhas perdidas, dormente aos sinais do próprio coração.
Ela sabia que corria o risco de retornar a casa, sozinha, de mãos vazias, ferida, exausta, derrotada.
Mas, o que a maioria esquece é que este, é também o risco de chegar com o maior dos tesouros na mão, renovada, sorridente, feliz...
E esse era um risco que ela se dispunha a correr.

A floresta parecia não acabar, e sabia que começava a divagar sobre tudo o que lhe haviam dito. Sobre todos os conselhos, todos os avisos e recomendações de cautela. Havia momentos em que duvidava de si mesma, ou sequer se o tesouro que procurava estaria nesta tão difícil, tão cerrada mata.
Obrigava-se a mexer um pé após o outro, sabia que estava a ficar cansada, com fome e frio.

A luz pareceu acordá-la. Correu de encontro ao que parecia ser uma descoberta. Havia luz! Muita luz! E se tivesse chegado? Estaria ali o seu objectivo? Correu mais rápido, acelerando até sentir a respiração faltar-lhe. Parou, estarrecida. 
O arco de folhas e ramos, convidava-a a sair da floresta, a voltar à civilização. Enquanto recuperava o fôlego, olhou atentamente para fora da floresta. Ao longe via estradas de terra batida e no topo da colina, a quilómetros, conseguia vislumbrar a torre de uma qualquer igreja. 
Pareceu-lhe cruel.
Uma bifurcação, uma escolha. Podia desistir, voltar. Podia retomar a sua vida com poucos arranhões. E quão tentador isso era, no momento em que sentia que a floresta não lhe ia dar nada em troca.
Nada a preparara para aquele momento, para decidir...


Enfrentou o negrume do caminho que se embrenhava para dentro do arvoredo. O coração aqueceu-lhe o peito. Deu um passo em frente.




quinta-feira, 3 de maio de 2018

Borrachas e Esferográficas

Quando entrei para a escola primária, foi-me ensinado que devia escrever a lápis, e ter sempre uma borracha à mão, não fosse enganar-me e precisar de apagar. Fui-me habituando a este método, sem dúvida interessante, em que os meus erros, por muito crassos que fossem, podiam sempre ser eliminados, podiam sempre voltar atrás.
Foi assim durante todo o primeiro ano de aprendizagem. A professora dizia que era normal errarmos, fazermos asneiras ao escrever, visto que tínhamos pouca prática e ainda agora havíamos aprendido como formar palavras, quanto mais frases e textos elaborados. 
No final do ano, já conseguia ter mais certezas sobre a maioria das palavras mas, mesmo assim, tinha sempre a rede de segurança ali ao lado: a, agora não tão branca, borracha.

De repente, e sem aviso, a professora avisou que, nesse dia, faríamos uma cópia a caneta. Por isso, teríamos de ter o dobro do cuidado, para não nos enganarmos. Dar o nosso melhor e fazer as coisas devagar e reflectidamente. Ora, é óbvio que isto parece uma descrição excessiva, para o mero acto de passar da escrita a lápis para a tão conhecida esferográfica. No entanto, para a criança de sete anos que fui, pareceu algo de extrema importância e responsabilidade. Começara a escrever, pela primeira vez, algo que seria irreversível.

Claro que me enganei muitas vezes, mesmo assim, e apesar de poder riscar o meu erro e continuar, nunca ficava um texto tão bonito, tão cuidado, tão limpo.
Hoje, ao olhar para trás, penso no quão pouco importantes eram esses erros, comparados aos que cometo hoje em dia.
E quão difícil, ou mesmo impossível, é apagar medos, memórias, decisões...
Na vida real, o relógio não volta atrás. Não pára. E não há borracha gigante para me livrar das consequências.
Claro que sabemos que os erros cometidos nos ajudam a escrever e reescrever a história da melhor forma. Que ajudam a usar a palavra certa, a figura de estilo mais apropriada, melhoram a caligrafia. E que, talvez um dia, sejamos capazes de escrever pelo menos uma página sem riscos, ou gatafunhos, ou acrescentos de palavras que nos esquecemos, por momentos, de colocar.
Olhamos para a folha do lado, e ficamos aliviados, por ver que somos todos iguais no que toca à escrita das nossas peripécias. Todos nos enganamos, todos tentamos voltar atrás, e, eventualmente, todos percebemos que o melhor é riscar, aprender, e continuar a escrever.
E penso se não será um dos ensinamentos mais importantes da escola primária: que há coisas que não podemos apagar. E que, no texto da nossa vida, só podemos tentar riscar os erros cometidos. Esperar que não ocupem grande espaço nas folhas, e que quem, um dia, se resolver a lê-los, não se importe com estas sujidades, estas irregularidades na história contada.